quarta-feira, 4 de março de 2009

Canção do Amor Demais (Elizete Cardoso) - 1958

Elizete Cardoso

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Vocal: Elizete Cardoso
Arranjos, regência e piano: Antonio Carlos Jobim
Violão: João Gilberto
Violino e arregimentador: Irany Pinto
Flauta: Nicolino Copia (Copinha)
Trombones: Gaúcho e Maciel
Trompa: Herbet

Contrabaixo: Vidal
Bateria: Juquinha
Sete violinos, duas violas e dois cellos não identificados
Coro "Chega de S
audades": João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Walter Santos
Gravado no estúdio (três canais) da Odeon, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1958
Transcrição análogo/digital: Golden Slumbers Studio (SP)

Masterização: Sun Trip, por Albertho Iessus (SP)
Produtor fonográfico: Estúdio Eldorado Ltda
Gerência Artística: Murilo Pontes
Produto licenciado por "Selo Festa de Irineu Garcia Ltda"
Produção gráfica e digitalização de LP/CD: Luiz Katmandu

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Faixas
01 - Chega de saudade (03:28)
02 - Serenata do adeus (03:08)
03 - As praias desertas (02:14)
04 - Caminho de pedra (02:48)
05 - Luciana (01:35)
06 - Janelas abertas (03:05)
07 - Eu não existo sem você (01:59)
08 - Outra vez (01:53)
09 - Medo de amar (03:07)
10 - Estrada branca (02:27)
11 - Vida bela (Praia Branca) (02:08)
12 - Modinha (02:01)
13 - Canção do amor demais (01:44)

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Canção do amor demais
Vinicius de Moraes

Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom, se preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha peça "Orfeu da Conceição", de que restou um grande sucesso popular, "Se Todos Fossem Iguais a Você" e, sobretudo, uma grande amizade. É notório que parceiros se desentendem: e a história da música popular brasileira está cheia dessas brigas de comadres, provocadas geralmente por vaidades e ciumadas, por um não querer o seu nome em baixo do nome do outro, quando não por motivos mais deselegantes e mesquinhos. Mas no nosso caso, não só essa amizade como um profundo afinamento de sensibilidades para a música, que constitui, sem dúvida, nossa distração máxima, tem determinado que fazer sambas e canções seja para nós um ato extraordinariamente livre e gratuito, no sentido da fatalidade.

Este LP, que se deve ao ânimo de Irineu Garcia, é a maior prova que podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. A partir dos sambas de "Orfeu da Conceição", raras têm sido as vêzes em que, de um encontro meu com o maestro, não resulte alguma composição nova, por isso que eu creio ser essa a verdadeira linguagem da nossa relação. Ponha-se Antonio Carlos Jobim ao piano – e é difícil encontrá-lo longe de um – e em breve, de dois ou três acordes, nascerá entre nós um olhar de entendimento; e de seus comentários cifrados ("–Isto são as pedras, poeta!"; "–Os pequenos caracois listados debaixo das folhas secas..."; "– As grandes migrações corais..."; "–O outro lado do riacho..."; "–Chegamos à galaxia...") eu terei sabido extrair exatamente o que ele me quer ouvir dizer em minha letra. E nunca houve entre nós quaisquer reservas no sentido de um tirar o outro de um impasse durante o trabalho. É possível mesmo que tudo isso se deva ao fato de que ele crê na poesia da música e eu creio na música da poesia. Porque a verdade é que eu gosto das letras que, eventualmente, Tom também escreve, como "As Praias Desertas"; e a prova de que ele considera as músicas que eu, vez por outra, também faço, está no carinho com que orquestrou a minha "Serenata do Adeus" e o meu "Medo de Amar" - todos neste LP.

Nem com este LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros mas sem nacionalismos exaltados, e dar alimento aos que gostam de cantar, que é coisa que ajuda a viver.

A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não constituem mais novidade, para que eu volte a falar delas aqui. Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibilidade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os valores permanentes na relação humana.

Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata.

Rio, abril de 1958.


O berço da Bossa Nova
Ruy Castro

Quando o LP Canção do Amor Demais chegou às lojas em meados de 1958, a maioria dos compradores de discos só tinha uma motivo para se interessar por ele: a foto e o nome de Elizete Cardoso na capa. Elizete tinha prestígio, mas das treze faixas que ela cantava, apenas uma, "Outra vez", já tinha sido gravada anteriormente (em 1954, por Dick Farney). Ninguém conhecia as outras doze. Os próprios autores do repertório "Música: Antonio Carlos Jobim / Poesia: Vinicius de Moraes" – não chegavam a ser uma atração comercial. Vinicius era famoso como poeta, mas as grandes massas ignoravam que ele e seu jovem parceiro Jobim tinham feito, dois anos antes, as canções do espetáculo Orfeu da Conceição, encenado no Teatro Municipal. Se, um dia, Canção do Amor Demais esgotasse a sua tiragem de 2.000 cópias, seria um milagre. Bem, isso acabou acontecendo. Com os anos, Canção do Amor Demais não apenas esgotou-se, como tornou-se uma raridade, uma peça de coleção. E com razão: é um marco na história da música popular brasileira. Foi o disco em que se ouviu, pela primeira vez, uma certa batida de violão, com uma "bossa" nova, diferente – que simplificava o sambas e limpava-o dos excessos dos ritmistas, mas parecia valer, sozinha, por toda uma escola de samba. Essa batida era ouvida em duas faixas: "Chega de saudade" e "Outra vez".
O nome do violonista, assim como o dos outros músicos presentes na gravação, não aparecia na contacapa e nem selo do disco. Mas um grupo seleto de pessoas no Rio sabia de quem se tratava: um baiano de 31 anos – João Gilberto. Poucos meses depois, o próprio João Gilberto lançaria o seu primeiro disco: um 78 rpm da Odeon contendo, de um lado, a mesma "Chega de saudade", só que cantada por ele e com a mesma batida do violão: do outro lado, uma composição sua, chamada "Bim-bom" (e, de novo, a inconfundível batida). Foi uma revolução.

A expressão Bossa Nova passou a designar o ritmo e foi adotada pelos rapazes e moças que transformaram aquela música num movimento.
O resto é História. Mas esta História só foi possível porque, antes, houve Canção do Amor Demais. Foi um dos primeiros songbooks produzidos no Brasil: um LP inteiro dedicado a uma dupla de compositores, gravado especialmente por uma cantora (e não uma coletânea de 78s já existentes, como também já se fazia). O pai da idéia foi o jornalista Irineu Garcia, que dois anos antes, fundara um pequeno selo chamado Festa, para gravar poetas brasileiros dizendo seus poemas. Um desses poetas era o diplomata Vinicius de Moraes, seu colega de uísques no Villarino, um bar no Centro do Rio. Mas Vinicius estava se bandeando para a música popular e já tinha uma gaveta de sambas e canções em parceria com Tom Jobim, alguns belíssimos: "As praias desertas", "Luciana", "Eu não existo sem você".
O disco nasceu de um papo entre eles no Villarino em fins de 1957.
A primeira cantora de que cogitaram foi Dolores Duran, também parceira de Tom e amiga dos três. Mas Dolores não se empolgou com a idéia de gravar uma parceria alheia. Então pediu alto, sabendo que Irineu não poderia atendê-la. Subitamente sem cantora, Tom, Vinicius e Irineu voltaram-se para aquela que, depois, passou a parecer uma escolha óbvia: a classuda Elizete Cardoso. Mas Elizete era contratada da Gravadora Copacabana – que só aceitou emprestá-la se isso ficasse registrado na capa do LP.
Com tudo acertado, os três partiram para os arranjos e ensaios na casa de Tom, em Ipanema, num endereço que, por causa desse disco, ficaria célebre: Rua Nascimento Silva, 107. Tom queria dar às orquestrações uma simplicidade quase de câmara. Para isso, usaria poucos instrumentos: doze cordas, dois trombones, uma flauta, uma trompa e a seção rítmica – e, mesmo assim, nem todos ao mesmo tempo. Haveriam faixas quase a capela, como "Estrada branca" (apenas Elizete e o piano) ou "Medo de amar" (praticamente um dueto entra ela e o contrabaixo). Em compensação, o trombone de Maciel conduziria a melodia de "Chega de saudade" e o violão de João Gilberto serviria como uma orquestra ao fundo.
João Gilberto não participou de todos os ensaios. Houve divergências entre ele e Elizete quanto à maneira de cantar "Chega de saudade". João advogaca um canto seco, semvibrato. Mas Elizete não via razão para modificar seu estilo e pode ter-se irritado com João Gilberto – disse a Irineu que não se adaptava àquela batida e que preferia ter ao violão seu velho acompanhante, o grande Mão de Vaca. Mas irineu pôs panos quentes: João Gilbert ficou e Elizete cantou como gostava, tornando Canção do Amor Demais ainda mais representativo. O contraste entre os dois estilos em "Chega de saudade", pode-se quase ver a transição do samba tradicional para Bossa Nova.
É a história acontecendo. Pronto o LP, Vinicius sugeriu que seu título fosse Eu Não Existo Sem Você. Tom preferia que ele se chamasse Chega de Saudade. Mas Irineu, como produtor, delicadamente impôs Canção do Amor Demais, título de uma das faixas. Tom parecia advinhar que "Chega de Saudade" estava fadado a um grande destino. À saída do estúdio da Odeon, depois da gravação desta faixa, ele, João Gilberto e seu amigo Walter Santos encontraram-se na Avenida Rio Branco com o influente letrista e radialista Haroldo Barbosa. Tom disse: "Haroldo, acabamos de gravar um negócio que eu acho que vai pagar". Pois não é que pegou?

2 comentários:

Gabriel Rodrigues disse...

Muito bom trabalho nesse blog, meu Caro!
Esse texto muito me emocionou. Estou louco para ouvir o album que me escapou nas pesquisas até agora por não ser um album em que Vinícius ou Tom cantam.

Nada como ter um guia para tornar as coisas mais fáceis ou, nesse caso, mesmo possíveis!

Erik dos Reis disse...

Muito obrigado mesmo Gabriel!!
A minha intenção é realmente essa: ajudar o povo a ouvir o Vinicius!
Abraço!